sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Íris, espelho do mundo sem cor


Mel. Talvez os seus longos cabelos doirados tivessem aroma a mel, mel silvestre. Absorviam a luminosidade do majestoso Sol, que bocejava no imenso céu azul. Íris era essa doce menina, portadora de todas as cores. Vivia no seio de uma família de poucos recursos. A sua mãe, Lídia, tinha os olhos profundos e cansados, pele gasta pelo ofício, considerada por muitos a melhor costureira de Ribeira do Moinho. Madrugava todos os dias, quando os feixes de luz penetravam no telhado velho e triste, desprovido das telhas que bruscamente, num dia de temporal, o vento levou. Sentava-se junto da sua máquina de costura, herdada da sua avó Rosa, passaram-lhe pela mão os mais sedosos tecidos e cores.

-Bom dia D. Lídia, olhe, não sei muito bem o que lhe dizer, mas é que estamos em tempos de crise … Acha que seria possível pagar-lhe no próximo mês? É que tem me afectado imenso o negócio. – dizia uma freguesa beata, de olhos implorantes e coração pulsante, que vendia queijos junto à fonte Almedina.

-Com certeza, eu percebo-a. Por aqui as coisas também não andam nada famosas. – respondia ela, mulher bondosa, humilde e compreensiva. Havia uma tristeza e amargura escondida no seu terno sorriso.

Todos os sábados, Alberto, pai de Íris, ia para a Raia vender gado, viajava numa carrinha alugada, com um motorista da terra. Tinha os cabelos grisalhos, crespos, que roçavam com o vento, mãos enormes, ásperas, repletas de caminhos cravados, inúmeros destinos. Era um homem respeitador e perspicaz. Cedo se habituara ao trabalho duro, a sua infância soube-lhe a pouco. Aos doze anos, trabalhou como aprendiz de um ferrador, seus pais haviam-lhe dito:

-Estás a tornar-te um homem e orgulhamo-nos por isso. Chegou a altura de começares a trabalhar e aprender o que a vida custa. Queremos-te um homem de valores, de bem. Queremos que te esforces e apliques para teres aquilo que queres. Nunca te dês por vencido. O que nunca te pode faltar é um sorriso no rosto e o sonho no coração. Damos-te a nossa bênção, meu filho. – aconselhou-o sua mãe, de face rosada e meiga.

- Farei isso minha mãe. Não vos desiludirei. – afirmou inocentemente, com toda a convicção que cabe nos pulmões de uma criança.

Antes de Íris nascer, Lídia deu à luz um menino, roliço, de cabeleira farta e negra. A alegria do sorriso de Alberto. Ninguém o fazia prever, nem a parteira, que há tantos anos trabalhava, porém às quinze horas de um dia de chuva intensa, Roberto no colo da sua mãe, fechou os olhos, para nunca mais acordar. Nunca tiveram coragem de o contar a Íris. E os anos passaram, as lágrimas secaram mas o vazio nos seus corações ficou. Muito tempo passou, Íris nasceu e iluminaram-se de esperança. Desde sempre tiveram um cuidado redobrado com ela, uma preocupação constante. Nunca faltaram com comida na mesa, não tinham luxos nem vícios. Viviam num casebre no alto de um monte verdejante de frescura, tinha portas largas, de madeira escurecida pelo tempo, janelas altas para poderem desfrutar de uma paisagem magnífica sob o rio Douro. Plantavam os seus próprios alimentos, numa horta em frente ao lar.

Lídia ainda não sabia, porém no seu ventre carregava dois frutos do seu amor por Alberto. Estava grávida de quatro meses. O tempo passou sentiu as primeiras contracções, dores intensas, o momento estava a aproximar-se. Horas depois, após um doloroso trabalho de parto, Lídia tinha nos seus braços, duas vidas, duas faces claras como cal, de olhos enormes e atentos, negros como a noite mais escura, reluzentes como um diamante polido. Nasceram num Sábado, quando o Sol atingia o seu auge de resplandecência assim sendo, Alberto não esteve presente, viajava por terras de Belmonte. Íris desejava há muito perceber o conceito de fraternidade e finalmente consegui-o, sentir os coraçõezinhos daquelas que são o Futuro fê-la perceber que nada sabia sobre o amor. Nasceram em casa pelas mãos da mesma parteira, que fez nascer Íris e o seu irmão. Estávamos em Maio, as mimosas floresciam e espreguiçavam-se sob raios de um sol cálido e fogoso. Mãe e filha esperavam ansiosamente a chegada de Alberto para lhe dar as boas-novas. Observavam através das janelas de vidro fosco, o alvoroço da rua, as paroquianas acorriam ao centro da vila, tinham expressões de pânico. Ouve-se a melodia da sineta, Lídia sente uma aperto no coração, desde o dia anterior que não tinha notícias do marido, partiu cedo, ainda a lua reinava. Abriu a porta era Otília, esposa do motorista de Alberto e de seu sócio Carlos:

-Boa noite D. Lídia, desculpe estar a incomodá-la a esta hora da noite mas a verdade é que não tenho notícias boas e estas não podem esperar. – verbalizou a medo, com a voz trémula de desgosto.

-Então mas diga mulher! – exclamou impaciente.

-Bem é o seguinte, não sei muito bem o que lhe dizer … - proferiu com os olhos afogados em lágrimas. – O meu marido teve um acidente, a carrinha caiu da ribanceira abaixo, ninguém sobreviveu Lídia. Encontrou-os Gilberto quando ia pescar. – informou-a desamparada, ainda atordoada com a notícia.

Não teve qualquer reacção, sentiu uma dor muito fininha e caiu estatelada no chão, perdeu o leite de seus seios, acordou horas depois numa cama do centro de saúde da vila. Diante de si estava Íris, com as suas irmãs ao colo, perdida entre o choro, sem saber o que fazer. Otília acompanhou-a e zelou pelo bem de Lídia. Rezou horas a fio.

- Minha mãe, tive tanto medo! – exclamou abraçando-a.

- Desculpa Íris, não fui forte o suficiente devia ter ficado a teu lado, não sei como isto me aconteceu. Estarei sempre contigo, nunca te esqueças. Juntas vamos conseguir superar a dor e criar as tuas irmãs. – prometeu-lhe ainda com a voz fraca e turva.

- Não te culpes, não tens culpa nenhuma mãe. Eu ajudar-te-ei em tudo o que conseguir. – jurou-lhe murmurando, dando-lhe um beijo na testa com todo o afecto do mundo.

A dor e o sofrimento invadiram o coração e a mente daquela família desmembrada, foram tantas as noites que chamaram por Alberto, tantas as vezes que pensaram que não era mais do que um sonho e que acabaria tudo na manhã seguinte. Alberto não regressaria em vida porém sempre quiseram conservar as suas memórias. Teve uma cerimónia digna e respeitosa, toda a aldeia esteve presente na sua despedida. Íris prometeu a si mesma no dia do funeral nunca mais derramar uma lágrima.

Algum tempo passou, Íris tinha agora vinte e cinco anos, era uma rapariga detentora de vasta pulcritude, seus cabelos de mel cresceram e faziam inveja a muitas mulheres, seus olhos azuis tornaram-se mais intensos e a sua silhueta formosa causava impacto no público masculino. Tinha cumprido a sua promessa, tornou-se uma filha prestável e uma irmã dedicada. Foi uma árdua tarefa, Lídia passou a ter que trabalhar no café “Pérola Doce”, para pagar as contas, muitas vezes não teve dinheiro para pôr comida na mesa e a refeição era feita dos seus legumes da horta. A bondade do povo contribuiu em muito para que tudo se tornasse concretizável. Clara e Rosa, os nomes escolhidos para as suas irmãs, tinham sardas no rosto, pele quase de porcelana e cabelos delicadamente penteados por Íris.

Quando alguém chega pela primeira vez à aldeia, é falada por muito tempo, talvez por haver a necessidade de dizer algo de novo onde não se passa nada durante anos ou apenas porque falar do outro é algo inevitável que corre no sangue da gente. Chegou num Outono frio, gélido, onde as árvores desacauteladas de pudor, desfilam nuas, abandonadas pelas folhas, era um comerciante de antiguidades, Aquilino era baixo, encorpado, usava uns óculos tortos na ponta do nariz. Todos os fins-de-semana o seu filho Sérgio vinha visitá-lo. Era alto, esguio, na casa dos trinta, de olhos assustados, cabelo espetado e princípios de barba, tinha tirado um curso superior e era veterinário. Numa tarde em que o Sol se escondeu nas nuvens, uma vaca pariu um vitelo, o parto complicou-se e necessitou da chamar Sérgio. Quando chegou, foi recebido por Íris:

-Bom dia, Dr. Sérgio. – cumprimentou-o timidamente rendida ao seu encanto.

-Por favor, não me trates por Dr.! Devemos ter quase a mesma idade, não é lá muito confortável … Como disseste que te chamava? – perguntou simpaticamente, com um sorriso esboçado com naturalidade.

-Pois, desculpa, não disse. Íris e tu? – respondeu atrapalhada.

-Íris, condiz contigo. Sérgio – retorquiu. – Ora vamos lá ver. – dirigiu-se para o curral onde encontrou a Mimosa e a Castanha.

Tornaram-se amigos. Passearam junto ao rio azul de mãos dadas, Sérgio levou-a ao esplendoroso mar pela primeira vez, sentiu o tacto macio da areia, as formas variadas das conchas que vinham nas ondas que rebolavam agitadamente. O desmaiar do mar, eternamente enamorado pela areia. Ficaram marcados na areia humedecida, os infindáveis destinos que traçaram juntos, tão perto de um pôr-do-sol.

-Foge comigo. Vou-te mostrar sítios que nunca antes viste. Sabores que nunca provaste, aromas que não imaginaste existir, vem conhecer comigo, descobrir horizontes e pessoas. – suplicou-lhe com faíscas de esperança incendiadas de amor que ardiam nos seus lábios.

- Não posso fazer isso a minha mãe. Ela não merece que eu a abandone, sempre esteve do meu lado para além de que está cansada e as minhas irmãs precisam de mim. – recusou conscientemente de olhar pensativo.

- Partirei amanhã. Não tive coragem de to dizer antes. A decisão é tua, viajarei meio ano.. – informou Sérgio.

- Mas como amanhã? Preciso de tempo. Não te posso perder, não o suportaria. – contestou, nesse momento a sua promessa foi quebrada e gotas leves, salgadas e cristalinas resvalaram e rebolaram pela sua face.

Fizeram-se as malas, aumentaram os devaneios, Íris fugiu sorrateiramente sem dizer nada a ninguém. Ao ecoarem as doze badaladas no sino da torre alta da igreja, saiu apressada de olhos postos na nossa senhora de barro, pousada na esquina da lareira porém deixou escrita uma carta.

“Querida mãe e irmãs,

Não quero parecer ingrata, fizeram tanto por mim! Agradecer-vos-ei para o resto da minha vida. Mas o meu Futuro não é aqui e o meu destino não é este. Encontrei o amor da minha vida, ele ia partir, tive medo, não conseguiria suportar o desgosto. Peço-vos o meu perdão, vou viajar, promete-vos que regressarei.

Com amor,

Íris.”

Quando leram a carta, o descontentamento era evidente, aquela mãe já tinha sofrido demasiado, perdeu um filho, o marido e agora a filha, durante dias rezou para que regressasse, para poder abraçá-la, senti-la. Nesse momento, Íris viajava pela Europa, subiram à ilustre Torre Eiffel, beijaram-se no rio Sena, onde se espelharam sorrisos de amor, sorrisos de paixão. Caminharam por terras de Itália, deslumbraram-se com a graciosidade de Florença, os seus edifícios enormes e harmoniosos, tudo era perfeito até ao momento, em que Íris atendeu um telefonema dirigido a Sérgio.

-Bom dia meu amor, como está a correr a viagem? Falaste com o veterinário famoso? Os teus filhos estão ansiosos por te ver! Há tanto tempo que não dás notícias. Estás aí?
Sérgio? – palavras ditas por uma voz feminina, extremamente sedutora e intrigante.

Desligou o telefone, pousou-o em cima da mesa, isto não podia ser real. Sérgio saiu do banho a sua pele molhada assemelhava-se a pequenos cristais, perguntou-lhe o que tinha acontecido, todavia ela parecia desnorteada correu pelas escadas, não o queria ver mais. Foram momentos de sofrimento, de angústia, de tormento. Nesse instante queria estar em casa, sentir o calor da família. Não tinha dinheiro, trabalhou três anos num cabeleireiro, para arranjar dinheiro para regressar. Conseguiu-o, o mundo parecia bem diferente visto daquela janela do comboio. Observou meticulosamente as mais variadas características das pessoas que nele embarcaram, todas elas tinham sonhos, vidas, algumas de certo desgostos bem mais tristes que o seu. Chegou num dia de Verão, quente, abafado, a aldeia fixou-a desmedidamente, as crianças e suas mães miravam-na estupefactas. Quando chegou ao casebre, não encontrou nada nem ninguém, estava vazia de recordações apenas restavam as paredes, que tinham cor desigual devido à sujidade. A única pessoa que lhe disse algo foi Otília.

- Julgamos nunca mais te ver. Já deves ter sabido do que aconteceu. Foi tudo tão repentino, lamento muito. – a mulher estava mais triste que nunca e os seus olhos pálidos.

-Mas do que está a falar? – perguntou realmente confusa.

- A morte da tua mãe foi uma tragédia para todos. Ninguém estava à espera, é normal que ainda não te tenhas recomposto.

Morte? Mas de que estaria ela a falar? O mais certo era ela ter enlouquecido. De certeza que estava senil. Perguntou-lhe pelas irmãs e ficou a saber que uma tia de Alcobaça se incumbiu de tomar conta delas.

O reencontro entre estas irmãs foi comovente, havia tanto para se ser dito, tantas explicações, tantos medos. Tinham crescido imenso, foram tão corajosas! Tinham os olhos meigos da mãe e o sorriso de Alberto, Íris abraçou-as e relembrou o dia em que elas nasceram, todas as dúvidas foram desfeitas, o verdadeiro e puro amor é a fraternidade. Sentiu um arrependimento enorme a percorrer-lhe todas as veias. Nunca mais amou nenhum homem contudo adoptou um menino, dedicou-lhe a vida e ensinou-lhe os verdadeiros valores. Após os desgostos inesperados da sua juventude, teve uma vida serena, constituiu família e relembrou a sua infância nos rostos dos seus netos. Partiu numa noite gélida, com o céu coberto de leves nuvens pardas e melancólicas.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010



No mais profundo dos olhares
Chovia. Ela via as nuvens chorar da janela do seu quarto. Deslizavam em vidro as lamurias do tempo, de um tempo outrora radiante, de um tempo triste como Marta. Toda a paisagem se revelava infeliz, silenciosa e serena. O vento bailava com as últimas folhas deixadas pelas árvores, amarelas, laranjas, castanhas, vermelhas. Seus olhos azuis como o mar, enormes e atentos, fitavam um ninho, no alto de um pinheiro robusto e esverdeado. O carinho materno estabelecido entre a ave e as suas crias era tocante e comovente e Marta chorou, chorou por todas as vezes que sentiu falta do afecto da sua mãe, das mãos delicadas que passassem pelo seu rosto em momentos de angústia, o sorriso em momentos de glória, sentia falta das histórias que se lêem à noite, da harmonia das letras da palavra mãe, o apoio, tudo o que Marta não teve. De súbito, levantou-se, deitou-se na sua cama e num gesto quase impensado esfolheou um livro de Fernando Pessoa, escolheu ao acaso um dos muitos poemas que o enriqueciam:
“Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.”
Vagarosamente, cerrou as pálpebras, e no conforto da poesia adormeceu.
O Sol espreguiçava-se no majestoso céu azul, que velozmente se cobriu de nuvens, melancólicas, acabrunhadas, nostálgicas tornando o ambiente pesado. Marta acordou, deixou a água fria do chuveiro correr sobre a sua pele jovem, um arrepio envolveu-a, não era impassível como julgara. Dirigiu-se para a cozinha onde estava o seu pai e Rosarinho, uma fiel amiga que durante estes anos tinha desempenhado um papel quase de mãe.
-Sim, eu entendo. Mas como é que as acções da empresa não atingiram o valor? Estamos na época alta, no Natal Sr. Marques! - afirmou indignado Abílio.
-Sempre a trabalhar, pai. Até há hora das refeições! Bom dia Rosarinho. – proferiu Marta, num tom de voz firme no entanto ensonado.
-Agora não posso, não vês que estou ocupado? Desculpe, não estava a falar consigo, sim diga. – foi tudo o que Abílio disse, enquanto se dirigia para a porta.
-É sempre a mesma coisa. – barafustou.
-Bom dia, menina, eu levo-a à escola, o seu irmão saiu mais cedo. – informou.
O colégio, onde Marta e Tomás estudavam, era grande, repleto de jovens de variadas idades, gostos, raças, tamanhos, a diferença era apenas uma característica, havendo assim uma escola mais unida e justa. Hoje, era o último dia de aulas antes das tão desejadas férias de Natal, Marta era uma excelente aluna, tinha uma rápida capacidade de cálculo e uma sensibilidade rara para a escrita, enaltecida pela sua professora, que a tem em elevada estima. Os seus textos eram publicados em revistas e jornais, com apenas quinze anos já tinha uma vasta obra literária. A manhã tinha sido semelhante a tantas outras, exceptuando a visível euforia estampada no rosto dos alunos. Ao longo da manhã, a paisagem alterou-se, cobriu-se de um branco imaculado e puro vindo do céu, essa tonalidade apaziguadora remetia para um silêncio doce de reflexão. O tempo prometia sorrisos, era o primeiro dia de Neve desse Inverno e a escola fechou de tarde. À saída Marta é surpreendida por Samuel.
-Espera Marta. – balbuciou Samuel nervoso.
-Diz. Passa-se alguma coisa? – respondeu Marta, num tom tanto preocupado como embaraçado.
-Não, não é bem isso. Hum, vem passear comigo. – pediu-lhe Samuel com os olhos aflitos e luminosos.
Parou. O seu coração parou, seguidamente bateu à velocidade da luz, fundiram-se os sonhos e tornou-se realidade o que ela tantas vezes sonhara.
-Claro. – corou.
-Óptimo – sorriu Samuel.
Passearam-se pelas ruas brancas, onde se sentia no ar o perfume das castanhas assadas, fazia-se sentir o frio e num acto de cavalheirismo Samuel deu-lhe o seu casaco. Caminharam junto ao rio, observaram a natureza, a graciosidade das árvores despidas, o rio frígido e estático, o céu taciturno e o vento ríspido. De mãos dadas, declarando o carinho voavam na inocência de um jovem e encantador amor. O rosto de Marta reflectia a réstia de luz que o Sol abandonara. Quando os seus olhares se encontraram, deixaram-se cair nos braços um do outro, por breves instantes que pareceram horas, os seus lábios encarnados e carnudos aliaram-se para profetizar o amor.
Em Vésperas de Natal, a casa estava numa agitação. O espírito natalício envolvia toda a família, ornamentaram a árvore de Natal, com as habituais decorações: sinos doirados que reluziam com as luzes vermelhas, amarelas, azuis; fitas das mais variadas cores e uma estrela no topo da árvore, imponente e sublime. No seu sopé, armoniosamente ordenadas permaneciam todas as figuras pertencentes ao presépio. No centro da mesa havia um arranjo, com flores apanhadas naquela manhã por Rosarinho, delicadamente envolvidas por um laço de cetim da cor dos mais luzidios rubis. Na lareira, labaredas de fogo, cores do pôr-do-sol, alaranjadas, avermelhadas, amareladas, rodopiavam ritmadamente. Um aroma doce percorria toda a sala, na cozinha Marta e Rosarinho, faziam diferentes receitas e deliciavam-se com o aspecto dos bolos, das rabanadas, filhós, tartes, arroz doce, aletria, bolo-rei com perfume a canela e açúcar. Tomás entretinha-se a pintar uma tela, pincelava desenhos abstractos representativos do seu estado de espírito. O seu pai avisou que regressaria tarde pois tinha uma reunião de negócios.
Precipitadamente, Marta fixou o calendário pendurado na porta do seu quarto e percebeu que era noite de Natal. Apressadamente vestiu a primeira roupa que lhe passou pelas mãos, no seu interior sentia-se realmente feliz. Esta época era a sua favorita, a sua família reunia-se para celebrar, a união, o afecto e o carinho.
Numa chegada incessante de pessoas, observava-se o sorriso terno da Tia Camila, que com os seus longos cabelos acastanhados, os seus traços fortes e os olhos verdes como a mais verde alga de um vasto oceano, iluminava de sincera alegria toda a sala, o tio Fernando portador de cabelos grisalhos que vibram ao vento, sorriso acolhedor e olhar altivo, entre muitos outros, depressa a sala ficou repleta de feições, de vozes, de opiniões, de alegria. Ruidosamente as crianças mais pequenas espalharam a sua euforia, havia uma diversão estampada nos seus ainda inocentes rostos. Melodiosamente ouve-se o tilintar dos copos, o tom dos risos, os murmúrios, as vozes, degustava-se o verdadeiro espírito dos sabores das palavras. Como já era costume, o seu pai chegou muito atrasado porém conseguiu facilmente integrar-se nas conversas até aí desenvolvidas. Rosarinho havia-se esmerado no jantar, todos pareciam adorar o cabrito com rosmaninho, mel e nozes e o bacalhau regado com fios de azeite, no centro da mesa velas ardiam e iluminavam este retrato familiar.
Nevava, flocos imaculados deslizavam do céu e Marta saiu para o jardim, o seu rosto angelical, quase de porcelana reflectia o frio dessa noite, ouviram-se passos, olhou sobre os seus ombros, onde os seus caracóis pousavam em cascata e reparou que Samuel sorria apaixonado. Marta correu para os seus braços e abraçaram-se demoradamente.
-Estou tão feliz por te ver aqui. – afirmou sinceramente Marta.
-Senti que só iria ser um Natal perfeito se sentisse a luz do teu sorriso.
Abílio espreitava toda aquela demonstração de afecto e relembrou todos os momentos passados com a mãe de Marta, o florescer de uma paixão, foi nesse preciso momento que percebeu que se refugiara no trabalho e se esquecera que os seus filhos tinham crescido, que o tempo não parou e que ainda há Futuro. Prometeu a si mesmo mudar a sua atitude e fortalecer o amor para com os seus filhos.
Sob os raios da lua, o majestoso céu azul, reunido o encanto e a magia sussurraram-se palavras ao som aprazível das badaladas ténues do alto da torre da igreja.
-Feliz Natal Marta.
-Feliz Natal Samuel.
Pairaram certezas, alimentaram-se esperanças, multiplicaram-se sorrisos numa noite resplandecente de Natal.

M de música (:


MusicPlaylistView Profile
Create a playlist at MixPod.com